31 março 2006

O que ouviu os meus versos disse-me: "Que tem isso de novo?
Todos sabem que uma flor é uma flor e uma árvore é uma árvore.
Mas eu respondi, nem todos (?.....)
Porque todos amam as flores por serem belas, e eu sou diferente.
E todos amam as árvores por serem verdes e darem sombra, mas
eu não.
Eu amo as flores por serem flores, directamente.
Eu amo as árvores, por serem árvores, sem o meu pensamento.

Fernando Pessoa/Alberto Caeiro - Poemas Inconjuntos

28 março 2006

Tarde tranquila, casi
con placidez de alma,
para ser joven, para haberlo sido
cuando Dios quiso, para
tener algunas alegrias...lejos,
y poder dulcemente recordarlas.

Antonio Machado - Poesias Completas

24 março 2006

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade - As palavras


20 março 2006

Somos nós que fazemos o destino.
Chegar à Índia ou não
É um íntimo desígnio da vontade.
Os fados a favor
E a desfavor,
São argumentos da posteridade.

O próprio génio pode estar ausente
Da façanha.
Basta que nos momentos de terror,
Persistente,
O ânimo enfrente
A fúria de qualquer Adamastor.

O renome é o salário do triunfo.
O que é preciso, pois, é triunfar.
Nunca meia viagem consentida!
Nunca meia medida
Do vinho que nos há-de embriagar!

Miguel Torga - Vasco da Gama


17 março 2006

...
Oh, eu não te culpo, flor,
esguia flor de eriçado ímpeto,
não te nego o direito
de levar o relâmpago
que a terra engendrou com a tua formosura,
para a casa dos ricos.
Eu tenho a certeza
que amanhã
florescerás em todas
as habitações do homem.
Não terás medo da rua esconsa,
nem haverá ao cimo da terra
sombrios tugúrios
onde não entre a primavera.
Não te culpo, flor, estou ciente
do que te digo,
e para que floresças onde deves
florescer, em todas as janelas,
é que eu luto,
flor,
e canto a partir de agora, assim
duma forma tão simples,
para toda a gente,
e reparto
as flores de amanhã

Pablo Neruda - Ode à flor
Tradução de Luis Pignatelli

14 março 2006

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho os meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drumond de Andrade - Mãos dadas



10 março 2006

El Dios que todos llevamos,
el Dios que todos hacemos,
el Dios que todos buscamos
y que nunca encontraremos.
Tres dioses o tres personas
del solo Dios verdadero.

António Machado - Parábolas VI

06 março 2006

Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una piccola... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
...
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
...
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
...
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
...
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.

Jorge de Sena - Uma pequenina luz

03 março 2006

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural -
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Fernando Pessoa/Alberto Caeiro - O Guardador de Rebanhos