29 maio 2006

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!

Natália Correia - Ode à Paz

25 maio 2006

22 maio 2006

E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem sei eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao solo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.

Fernando Pessoa/Alberto Caeiro - O guardador de rebanhos
Foto de Platero

19 maio 2006


Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,

outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.

E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,

de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim sem nome algum -
-que mesmo o que se encontra não se encontra.

Jorge de Sena - Desencontro

15 maio 2006

...
Para lá de todas as forças está o que sou,
Divertido, complacente, compassivo, indolente, unitário,
Olhando para baixo, erecto ou apoiando o braço numa impalpável base,
Olhando com a cabeça inclinada e curiosa o que virá a seguir,
Ora dentro ora fora do jogo observando, maravilhando-me.

Regresso e vejo os meus dias de conflito e obscuridade com os linguistas e
contendores,
Não escarneço nem refuto, testemunho e espero.

Walt Whitman - Canto de mim mesmo IV

12 maio 2006

Pela manhã dentro esperei ontem,
Diziam eles que não virias, supunham.
Maravilhoso dia, lembras-te?
Um feriado! - Dispensa casaco.

Andrei Tarkovsky - "8 ícones" (excerto)

07 maio 2006

A rosa do povo despetela-se,
ou ainda conserva o pudor da alva?
É um anúncio, um chamado, uma esperança embora frágil,
pranto infantil no berço?
Talvez um ai de seresta, quem sabe.
Mas há um ouvido mais fino que escuta, um peito de artista que incha
e uma rosa se abre, um segredo comunica-se, o poeta anunciou
o poeta, nas trevas, anunciou.
...

Carlos Drumond de Andrade - Mário de Andrade desce aos infernos IV (excerto)

04 maio 2006

Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.

Estou tão longe da margem que as pessoas passam
e as luzes se reflectem na água.

E, contudo, a margem não pertence ao rio
nem o rio está em mim como a torre estaria
se eu a soubesse ter...
uma luz desce o rio
gente passa e não sabe
que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem
as nuvens não passem
tão alta tão alta
que a solidão possa tornar-se humana.

Jorge de Sena - Metamorfose

01 maio 2006

A pedra representa o êxtase absoluto, a serenidade absoluta, o estado morto
e angélico das coisas.

Teixeira de Pascoaes - Aforismos